top of page

Adiafa das vindimas

Adiafa de pipa aberta e porta aberta

 

Carro de bois preparado para o transporte da última dornada

Nesse momento, ouviam-se as vozes das raparigas em alegre despique com o som das tesouras e das navalhas , que iam cortando os últimos cachos.

Os rapazes, ofegantes mas ansiosos, poceiros aos ombros, deixando já correr o mosto pelos sacos que protegiam um pouco as camisas de riscados, carregavam as uvas para a dorna, enquanto o boi, pachorrentamente, ia segurando o carro e olhando o duro trabalho da vindima, mesmo no último dia.

– Então, esta leira? – perguntava o feitor. Andem lá, senão… adiafa… viste-la!

– Ó ti Maria, vossemecê arranjou a roca?

– Corta e cala-te, mulher. Está ali o Zé a cortar as vides e a dobrá-las; as flores e as bolachas estão na minha cesta, ao pé do poço. Por isso, não te apoquentes, que vais ter ramo para estregar à patroa!

E, costas dobradas e saias ensacadas, para não se puírem muito, continuava o corte, até porque estava quase a acabar.

– Eh rapaziada, acabou! Vamos lá a preparar para a adiafa!

Foi um corrupio, enquanto os rapazes e algumas mulheres acarretavam as últimas poceiradas para a dorna, os outros davam os últimos retoques na roca, que havia de ser entregue à filha ou à mulher do lavrador, depois das vides dobradas em arco, vieram as flores de papel, as parras, as bolachas e os cachos, símbolo do trabalho agora acabado, as madrinhas (duas mulheres da “sociedade”), entretanto, punham-lhe as fitas, nas quais pegariam quando a roca fosse entregue. Até parecia um pendão! E, enquanto as saias de chita, os aventais, os saiotes de baeta, os caixinés, os barretes, os chapéus de cotim, ou mesmo as cintas, eram postos em ordem e com dignidade para ir para a festa, a Mariazita, porque era a vindimadeira mais nova, pegou na roca, levou-a para o carro de bois, subiu e segurou-a, pondo-a dentro da dorna.

Eh pessoal, já cá está a cachopa e vocês ainda aí estão?!  Vá!  Vocês vão para a festa, mas vão do trabalho. Por isso, não queiram pôr-se agora em trajo domingueiro! Tragam os poceiros e os cestos à cabeça, se já não couberem no carro. E tudo a andar que o patrão já está á espera! E cantem mais alto , raios! Ou já vos falta a força?

Todos cantavam, era o último dia de um trabalho extenuante e iam poder compensar o esforço com uma ceia oferecida pelo lavrador, para além de já terem o bailarico assegurado com os tocadores amigos.

Vamos a ver quem é que tem fôlego para bater o vira?

Aproximavam-se, agora, da casa do lavrador, que já os esperava ao portão e de mangas arregaçadas. Até lá tinha convidados: Lá estava a senhora Marquinhas e o marido, pessoas de teres e haveres. As heranças . . .

Entraram para a adega e pararam. Nesse momento, foi feito silêncio, enquanto as três vindimadeiras tiravam a roca da dorna. Ajeitaram-na, a Mariazita pegou melhor nela, cada madrinha pegou na sua fita e dirigiram-se à filha do lavrador, que se encontrava entre o pai e a mãe. Então, a Mariazita disse-lhe:

Ofereço este raminho
Por menor idade
É oferecido por mim
E pela minha sociedade

Ao que a menina retorquiu, pegando no ramo que lhe ofereciam:

Eu aceito e venero
Por ser das mãos de quem vem
Eu não era merecedora
De alcançar tamanho bem.

Rompia, agora, uma salva de palmas e a alegria tinha o seu ponto alto. Com dificuldade, o lavrador ainda conseguiu dizer:

Vá, despejem o que está nessa dorna nos tanques ou nos balseiros, enquanto se acaba de fazer a ceia. Ó cachopas, vocês ajudem a preparar as coisas para ver se a gente começa a comer.

E não tardou muito. Cada um ajeitava-se como podia, fazendo até de um poceiro virado uma mesa. E a sopa de grão de bico com muita carne de porco foi saudada com palmas e vivas à patroa, o mesmo acontecendo com o carneiro guisado, que veio a seguir, para não falar das bilhas de vinho, que até parecia ter mais sabor. No fim, a lavradeira mandou servir o arroz doce e cestas de uvas, mas destas estavam todos eles fartos, e atiraram-se ao arroz doce, que só se comia em dia de festa.

Como este era um dia diferente e era necessário ir controlando a pisa, feita por rapazes, em ceroulas ou mesmo em calças de cotim arregaçadas até ao joelho, o lavrador ceou com os trabalhadores e até dançou com eles, homem do trabalho, também sabia o que ele custava …

Chegaram os tocadores. Cada um escolheu o seu par e . . . dança!

O ti António, com a sua concertina, lá ia “picando” a ti Maria com as suas quadras, e esta não se fez rogada e zás:

Nunca vi pinheiro torto
Com a ramada direita;
Nunca vi um rapaz novo
Com a barba tão mal feita!

Toda a gente riu e o ti António não se ficou:

Quando eu era rapaz novo
E botava o meu pião;
Todas as meninas diziam
E bote-me aqui na mão!

E neste ambiente de festa, a adiafa continuava com outras modas de desafio e até modinhas de todos:

Ó Rosita, eu pedi-te um beijo,
E ó Rosita, eu pedi, pedi.
Passastes, não me falastes,
Nem para mim olhaste, mas eu bem te vi. . .

E era isto até ao romper do dia, temperando-se as gargantas à passagem da bilha do vinho por todos, enquanto os conversados aproveitavam todas as danças para juntarem as mãos e se acariciarem disfarçadamente, trocando olhares e juras de amor.

Quando começava a debandada geral, ia nos corações o anseio de que no ano seguinte, o lavrador continuasse a dar trabalho e adiafa de pipa aberta e porta aberta a todos quantos se quisessem associar à festa dos vindimadores e das vindimadeiras.

bottom of page